terça-feira, junho 14, 2005

(des)Ilusões

Eis que a suposta gravidade começa a fazer sentido no momento em que a queda encontra os seus limites na calçada de betão, pintada de fresco dois dias antes, mas a contra gosto, por dois operários a queimar os últimos minutos antes do final do turno. Os vinte e poucos anos de vida, moldados em forma humana, eram agora não mais do que uma massa disforme, envolta num líquido encorpado e avermelhado, fruto da tentativa de fusão entre duas matérias não fundíveis. Facto é que tal seria impensável, um tamanho salto para o pátio das traseiras. Impensável e imprevisto, muito menos naquele simpático e quente verão, que se ia desenrolando languidamente, e a apenas dois dias do encerramento sazonal da firma. Aparentemente aquilo estava fora de hipótese, não faria sentido após a esperada promoção... mas a verdade é que o puto, que até era atinadinho e porreiro, não aproveitou os lucros de feitos passados.

O mar ia quebrando certinho, tava tipo filme havaiano, perfeito para abençoar o sol que se ia anichando lá por trás da última linha visível, lentamente, como se quisesse sair de fininho, como que a tentar passar despercebido. Todo aquele cenário transpirava serenidade e paz. Avançou até ao mar. Enquanto grossas gotas de água salgada lhe escorriam pela face, tropeçando num sorriso nervoso antes de chegarem ao queixo, foi tirando a roupa, peça por peça. Sentou-se e fumou meio cigarro, e deixou a metade acesa a queimar o pequeno bilhete que tinha escrito meio á pressa, ainda dentro do carro. Levantou-se e avançou, contra a rebentação, por entre branco, prateado e aquela cor de fogo linda, que só o por do sol consegue transmitir ao mar. Dias antes tinha recebido a notícia que a esperada criança tinha, finalmente, nascido.

A fazer lembrar os subúrbios americanos, ou o sonho americano, aquela é, certamente, a vida perfeita para muitas pessoas. Uma mulher super vistosa e sempre soberbamente arranjada, que cuida incansavelmente de três crianças muito louras como o pai. A vivenda, com o esplendoroso jardim relvado em volta, a piscina e a garagem espaçosa, onde ficam albergados o veículo todo o terreno e o desportivo topo de gama, acabadinho de estrear. E claro, os cães, um alvo e outro negro. Tudo isto numa rua tranquila, numa localidade pacata, com uma comunidade falsamente amistosa. Abriu a porta e passou o vestíbulo, subindo rapidamente para o escritório. Assinou uma dezena de documentos e cheques e alimentou as piranhas do aquário, enquanto observava pela janela a brincadeira dos filhos. A seringa, cheia de ar, foi cuidadosamente retirada de dentro da gaveta. O sufoco acabaria em breve…

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